Por : Daniel Lemos Cerqueira
Se existe uma instituição trabalhista cujo objetivo primário é penalizar os próprios trabalhadores que ela deveria defender, contraditoriamente, é a Ordem dos Músicos do Brasil. Nascida em 1960 por iniciativa de um presidente republicano, admirador da música e, também, dos músicos – nem sempre uma admiração vem acompanhada da outra – chamado Juscelino Kubitscheck (que, inclusive, tem uma fotografia com o coletivo do Clube da Esquina), a OMB representava nesse momento a esperança de musicistas explorados por bares, restaurantes, hotéis, políticos, gravadoras e organizadores de eventos, que através de acordos informais, pagavam mal, não assumiam direitos trabalhistas, exigiam uma carga horária de horas ininterruptas e ainda ameaçavam: “se você não quiser, tem um músico na esquina que cobra a metade do preço”.
Até 1964, a classe musical estava eufórica: enfim, uma entidade para lutar pelo nosso direito a uma vida digna, tendo sua atividade reconhecida como trabalho ao invés de um mero “entretenimento”. E logo uma Ordem! Em pé de igualdade com os advogados, que têm uma força política gigantesca no país!
No Maranhão, o Conselho Regional da OMB, ao ser criado, concretizou iniciativas importantes, como organização de eventos e a criação da Escola Popular de Música em 1961, tendo à frente a professora Herbênia Machado, a pianista Zezé Cassas e o maestro Pedro Gromwell dos Reis (1887–1964), figura de relevo na cena musical ludovicense e presidente interino da Ordem:
OMB/CRMA em 1962, com Zezé Cassas (primeira à esquerda), Pedro Gromwell (quinto) e Hermênia Machado (sexta). Fonte: fotos de Ediméia Gromwell, em 2018.
“A vida é um sopro”… em 31 de março de 1964, o Brasil foi tomado por um regime ditatorial. Como reflexo, a recém-criada OMB e toda a expectativa em que estava envolta se tornou um instrumento de repressão: passou a exigir que todos os músicos pagassem a anuidade para exercer a profissão, sem, no entanto, oferecer contrapartidas para consolidar a profissão de musicista na sociedade. Um dos reflexos dessa “nova ordem” na OMB é o fato de que o Conselho Regional de São Paulo teve o mesmo presidente por mais de 43 anos. Para conhecer mais sobre esse período tenebroso da OMB, recomendamos a leitura do livro “Sonho de Ordem”, fruto de uma pesquisa de monografia em Jornalismo, disponível em <https://blogode.files.wordpress.com/2009/02/sonho-de-ordem.pdf>.
Um dado interessante sobre a OMB: seu Estatuto inicial exigia que seu presidente fosse bacharel em Composição e/ou Regência, fato que demonstrava uma tentativa de manter a hegemonia de um grupo restrito no poder. Porém, ao observar que a música de concerto (perfil de formação que ainda prevalece na maioria das universidades de hoje) conta com uma quantidade restrita de profissionais atuantes, foi criada a categoria de “músico prático”, cujo intuito era apenas obter uma quantidade maior de credenciados – e, com isso, de pagamento de anuidades. E, assim como ocorria nos festivais televisionados da época, em que os autores das canções de protesto eram ameaçados, exilados ou torturados, a OMB perseguia os músicos – sem direitos, apenas deveres.
A ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, durante o 1.º Encontro Nacional de Gestores da Cultura, promovido pelo Ministério da Cultura (MinC), em Vitória/ES, afirmou de maneira brilhante que “em uma cultura democrática, é preciso que cada um exerça seus direitos a tal ponto que se sedimente o que nós chamamos no direito de sentimento constitucional democrático”. Ou seja: a cultura é um elemento fundamental para a Democracia; daí o desmonte, silenciamento e desprezo com que figuras didatoriais tratam as manifestações artísticas e culturais. E figuras de destaque na música brasileira, esforçadas para além de suas carreiras estabelecidas, tentaram combater os desmandos da OMB: foram elas a cantora Elis Regina (1945–1982), que atuou na criação da Associação de Intérpretes e Músicos (Assim) para efetivamente representar a classe musical; e o maestro César Guerra-Peixe (1914–1993), que tentou se candidatar à presidência da OMB Nacional. Porém, o conluio autoritário não permitiu o avanço desses movimentos de espírito democrático.
Mesmo após a redemocratização, em 1988, a OMB continuou com seus desmandos autoritários, penalizando os músicos por trabalhar de maneira cruel – principalmente a partir do cancelamento de apresentações ao vivo, uma situação extremamente constrangedora. Entretanto, a insatisfação da classe musical, associada à razoabilidade dos juristas em exercício, acabou prevalecendo em anos posteriores. No Maranhão, a OMB/CRMA foi proibida de cobrar anuidade a partir de 2005, em processo iniciado pelo então Secretário de Estado da Cultura, o professor de música Antônio Francisco Padilha. Os autos do processo dispõem que:
[…] não há potencialidade ofensiva à sociedade em razão da atividade daqueles que têm a música por profissão, daí inexiste o interesse do Estado em exercer seu poder de polícia através da delegação a uma autarquia como a OMB. […] Nesse ponto, os dispositivos da Lei 3.857/60 que impunham a exigência são incompatíveis com a ordem constitucional pós-1988. (JFMA, Processo n.º 2005.37.00.004042–4)
Em nível nacional, um músico que entrou na justiça de Santa Catarina contra a proibição de exercer sua profissão pela OMB/CRSC chegou, por recursos, até o STF. Em 10 de outubro de 2011, o colegiado, sob a relatoria da ministra Ellen Gracie, decidiu pela ilegalidade de cobranças para o exercício profissional do músico, argumentando o fato de que a “[…] atividade de músico é manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão”. Apesar da decisão aliviar um fardo carregado pelos músicos, essa justificativa não contribui para diferenciar a liberdade de expressão artística do exercício profissional da arte – ou seja: os musicistas lutaram por cinquenta anos para voltar à estaca zero. Em 2014, a matéria foi retomada, reiterando a decisão – veja‑a aqui: <https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=4966162>.
Contudo, por ser uma autarquia especial, a Ordem dos Músicos – assim como a dos Advogados – não pode ser extinta; o que acontece é a cessão de suas atividades por falta de financiamento. E por isso mesmo, temos acompanhado as reais intenções por detrás do ressurgimento da OMB/CRMA que está sendo divulgada em todo o Estado. Seu presidente atual, nomeado em caráter interino pela Resolução n.º 17/2023 do Conselho Federal da OMB, tem nesse mesmo documento a tarefa de conseguir adesões para, posteriormente, convocar eleições – informação que não está sendo repassada. Acesse a resolução aqui: <https://www.ombcf.org.br/wp-content/uploads/2023/06/Resol-17-OMB-MA-20231.pdf>. Diante da falta de transparência do processo, assumimos a obrigação cidadã de informar a todas/os:
NINGUÉM, EM NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA, É OBRIGADO A PAGAR ANUIDADE PARA EXERCER A PROFISSÃO DE MÚSICO.
Caso alguém te convide para aderir à Ordem dos Músicos, sugerimos fazer as seguintes perguntas:
- Quais são as contrapartidas que vocês oferecem (que é diferente de “prometem”) para melhorar as condições trabalhistas da classe musical?
- Quais são os serviços que vocês possuem para ajudar músicos a desenvolver seu trabalho? – exemplos: elaboração de portifólio, agendamento de espaços culturais para shows, ajuda financeira para viagens, assessoria de divulgação, fomento à gravação de álbuns, ajuda para streaming e redes sociais…
- Vocês têm um piso de cachê para apresentações musicais?
- Vocês fiscalizam contratantes, mesmo que na informalidade, sobre acordos feitos com músicos que aceitam trabalhar por cachês menores que os definidos nesse piso?
- Vocês têm parcerias com instituições musicais para ofertar cursos de capacitação como autogestão de carreiras, formação de técnicos de áudio, iniciação à leitura de partituras e produção musical em estúdio?
Caso eles realmente tenham alguma contrapartida a oferecer para musicistas, aí é interessante pensar na possiblidade de aderir à OMB. Caso contrário, nunca deixe de questionar a instituição em relação a seus próprios direitos como cidadão e trabalhador. Lembre-se que foi essa aceitação passiva presente na ditadura, sem nenhum direito a questionamentos, que deturpou completamente a missão e o sentido da OMB. E só nós mesmos para promover as mudanças nessa entidade, em prol da música brasileira.
Maranhão, 22 de setembro de 2023.